Os números não batiam. Desacostumado com a incoerência, Rafael não sabia o que fazer. Procurou alguma opção no monitor que pudesse registrar o erro dos dados. Nada encontrou. Refez a conta. Quarenta e dois nascidos na parteria D até ás 18 horas, Quarenta e um recebidos na ala 23 do berçário IV até á meia noite. Rafael deu de ombros, alterou o dado para o valor correto e seguiu para próximo formulário.
Chorava um pequenino ser perdido numa calçada fria. Ele não foi enxergado por ninguém, não havia lugar pra ele na programação do sistema. Ele não havia sido previsto, perdeu-se da linha de produção e não completara seu trajeto. Chorava no mais agudo volume que podia mas o sistema não era capaz de ouvi-lo, não era programado para ouvi-lo. Chorou até dormir.
Ao amanhecer a pequena coisa já havia desistido de chorar. A calçada já não mais estava tão fria. Mas a luz do sol machucava-lhe os olhos. Enrolou-se num canto e ali ficou até que imaginasse algo diferente pra fazer.
Incapaz de se comunicar, incapaz de entender muito do que acontecia a sua volta, mas extremamente hábil em não ser notado, um humano andava entre os outros. Seu maior temor era que algum deles que passavam viessem dizer-lhe algo. Sabia que qualquer que fosse este algo não seria capaz de entender. Não passara pelo programa educacional que os outros passaram.
Seu corpo era anormalmente esquelético. Era o único humano que não sabia a frequência correta da vitaminação. Também era o único que ultrapassava as quadras. Os humanos não precisam ultrapassar quadras uma vez que seus dormitórios e escritórios eram devidamente planejados pra estarem na mesma quadra. Cada quadra possuía exatamente tudo que os humanos que moram nela precisam; seus refeitórios, copulatórios, empórios, escritórios e dormitórios.
Sempre se perdia, andando e repetindo tudo que os outros faziam. Não sabia voltar por onde veio, uma vez que o que tinha á sua frente era exatamente igual o que tinha ás suas costas. Mas por um momento teve a impressão de que notara algo que não era igual áquilo que já havia visto. No fim de uma imensa rua havia um prédio pouco mais alto que os outros. Sentiu o desespero correndo por suas veias e correu. Agitava-se pela animação de finalmente descobrir algo que não fosse tediosamente igual a tudo. Suas energias acabaram no meio do caminho. Parou no refeitório de uma das quadras, serviu-se de uma das vitaminas esverdeadas que saiam igualmente gosmentas de todas as máquinas, tomou em dois goles e continuou correndo.
Com empolgação entrou no imenso prédio onde via muitos outros da sua idade. Andavam em filas, entravam em salas e saiam de salas, todos vestidos com muitas cores diferentes, com muitos padrões semelhantes também. Seguiu um deles, entrou numa das salas e sentou-se á uma das mesas. Num monitor via múltiplas imagens, reparou que os outros usavam fones na cabeça, então tratou de vestir o que encontrava sobre sua mesa. As imagens falavam, conversavam, e muitas coisas foram explicadas. Muitas coisas que antes confundiam ficaram esclarecidas.
Quando saiu de lá já era noite. E sentiu a capacidade de falar. Ouviu as grandes fotos brilhantes da rua e as entendeu. Viu as imagens coladas nos vidros dos refeitórios e conseguiu lê-las. Percebeu-se alfabetizado. Animou-se como nunca antes, inflou seus pulmões como nunca soube que podia. E correu. Pela mesma rua. Agora sabendo de que sentido havia vindo e para qual sentido ia. Conseguia ler. Conseguia entender. Passou a madrugada correndo. Rindo. Lendo. Entendendo. Se sentindo um deles.
Parou apenas ao encontrar um novo prédio. um diferente daqueles que haviam em todas as quadras iguais, e diferente daquele que o havia ensinado a entender. Era grande e baixo. Seguiu sua mais longa parede até onde encontrou janelas pra ver o interior.
O cansaço carcomia seu corpo mas não impedia que a cena lhe espantasse. Pela janela via esteiras rodando sob vários carimbadores de etiquetas. Cada carimbador etiquetava com um nome diferente, mas não muito diferente. Sonolentos os bebês eram etiquetados de Bruna, Gustavo, Amanda, Vitor, e o que deviam ser seus sobrenomes eram séries de números, Vitor 6029384, Carol 7203846, Rafael 4019367, Ana 7192849 Pedro 5920893, Mariana 6723854, Lucas 4267402, Julia 6982367... Chegou a notar a repetição, ou quase repetição quando viu um Pedro 5920894. Não conseguia entender o porquê, mas aquilo tudo nauseava-lhe. Sentiu-se menos humano. Sentiu-se perdido e confuso como deviam estar aquelas crianças. Teve de continuar andando, com nojo da realidade que respirava, mesmo incapaz de entender, mesmo sem querer entender, mesmo sem saber se ia pra de onde havia vindo ou pra onde estava indo. Seguiu a grande rua até precisar sentar pra dormir, numa parede qualquer encostou-se em posição fetal e adormeceu.
Abriu os olhos quando sentiu que o ar brilhava demais. Viu raios de sol iluminarem seus pés de muito longe. Ainda era noite mas o sol conseguia alcançar seus membros. Ele nascia no fim de tudo, mas de uma linha que dava pra ver, era realmente distante mas o sol era capaz de percorrer aquela distância. Levantou-se em choque quando notou a ausência de prédios. Conseguia ver muito além do que jamais conseguiu. Todas as casinhas á sua frente eram pequeninas, muitas, mas pequenas, e cada vez menores quanto mais próximas do sol. Viu ao seu lado um par de portões. Dividiam a rua de um grande sítio, que possuía casas baixas mas bem maiores. Os portões não eram de pedra nem de metal. Eram cor de sujeira e nunca tinha visto um material daquele, por isso assustou-se quando rangeu ao tentar movê-lo. Entrou e foi andando, de olhos arregalados. Nunca vira tantas pessoas velhas juntas e desacompanhadas de robóticos, eles sempre estavam acompanhando os idosos á algum lugar. Aquele devia ser o lugar afinal. Os idosos reparavam sua presença, olhavam com simpatia, pondo os dentes a mostra. Não via humanos lá fora fazendo aquilo, mas era acalentador. Começou a ouvir um som semelhante ao do portão, mas repetitivo. E o seguiu. Viu o humano mais velho que já vira desde que percebeu que existia, sentado numa cadeira que o empurrava pra frente e pra trás.
Olhou pro senhor franzido na cadeira balançante. Recebeu o olhar de volta. De repente ambos sentiram a mesma paralisia, sentiram o mesmo enjoo e desespero. Suando frio, o velho viu o esquelético menino aproximar-se dele. O menino sentiu-se familiarizado ao notar as cores dos olhos do velho. Relaxou-se quando sentiu o quão inofensivo realmente era o menino que se aproximava. Ele tocou a mão do velho e nisso o corpo jovem apagou-se, como um velha memória que se esquece, e o velho lembrara.
Viu-se nos campos onde os alfabetizados eram recolhidos para trabalhar. Viu os idosos de sua época serem levados pra alojamentos tal qual o que estava agora. Viu a si e aos seus parceiros enquanto eram encaminhados para as alas de entretenimento. Lembrou-se de muitas horas que ficou assistindo a propagandas e propagandas, uma atrás da outra. Lembrou-se de ser alimentado cade vez pior, mas ficando cada vez mais saudável. Lembrou-se de ser selecionado e enviado uma vez por semana ao copulatório 84, de ir e voltar de lá milhares de vezes até começar a definhar de artrite. E então viu-se onde estava a muitos anos. Envelhecendo. Apenas. Descartado. Inútil ao sistema. Deixado para morrer.
Olhou a sua volta, pela primeira vez em muitos anos, olhou e enxergou. Viu tudo aquilo que o sistema havia planejado. Entendeu o que todos estavam fazendo, o que estava sendo feito a todo momento. Percebeu a diferença da vida que tinha quando ainda sabia o que era consciência e da vida a qual sobrevivia agora, se é que podia chamá-la de vida. Marejou seus olhos quando lembrou do que era sentir empatia. Sentiu a vida de todos a sua volta, sentiu sua quantidade. Seu padrão. Seu vazio. Lembrou-se do que era sentir agonia.
Sua única lágrima mal havia alcançado o chão quando morreu de parada respiratória.
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